sábado, 18 de dezembro de 2010

Não é assistencialismo, é escola!!!

Março 2010

Educação Infantil no Brasil: cem anos de espera

Assistencialismo perdurou por quase um século e só perdeu força quando a Constituição de 1988 tornou o segmento um dever do Estado e fortaleceu seu caráter educativo

 
A biblioteca do escritor e professor Mário de Andrade, na segunda metade da década de 1930, guardava uma coleção que pareceria estranha para quem visitasse a casa do intelectual das letras naquela época: um acervo com mais de mil desenhos produzidos por crianças. O educador começou a coleção quando foi responsável pela criação de parques infantis na cidade de São Paulo em 1935, ocasião em que ocupou o cargo de chefe do Departamento de Cultura da prefeitura da capital paulista. Neles, o escritor promovia concursos de desenhos e incentivava outras atividades artísticas entre os pequenos. "Mário de Andrade foi um dos primeiros pensadores da Educação Infantil no país a acreditar na valorização das produções das crianças e a colocar a atividade artística como um dos fundamentos desse segmento”, explica a professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), Márcia Gobbi. Apesar do interesse e esforço isolados de educadores como Mário de Andrade, a Educação Infantil levou muito tempo para se desvencilhar do caráter que a pontuou desde o início: a assistência social. Essa demora foi de quase um século – o primeiro jardim da infância foi inaugurado em 1895, em São Paulo. Mudanças estruturais começaram somente na década de 1970, quando o processo de urbanização e a inserção da mulher no mercado de trabalho levaram a um aumento significativo na demanda por vagas em escolas para as crianças de 0 a 6 anos. Como não havia políticas bem definidas para o segmento, a expansão de instituições de Educação Infantil nessa época foi desordenada e gerou precarização no atendimento, feito, em geral, por profissionais sem nenhuma formação pedagógica. Em 1975, o Ministério da Educação começou a assumir responsabilidades ao criar a Coordenação de Educação Pré-Escolar para atendimento de crianças de 4 a 6 anos. Ainda assim, o governo continuou promovendo, em paralelo, políticas públicas descoladas da Educação. Em 1977, foi criada, no Ministério da Previdência e Assistência Social, a Legião Brasileira de Assistência (LBA), com o objetivo de coordenar o serviço de diversas instituições independentes que historicamente eram responsáveis pelo atendimento às crianças de 0 a 6 anos. Essas instituições eram divididas em: comunitárias, localizadas e mantidas por associações e agremiações de bairros; confessionais, mantidas por instituições religiosas; e filantrópicas, relacionadas a organizações beneficentes. A LBA foi extinta em 1995, mas o Governo Federal continuou a repassar recursos para as creches por meio da assistência social. Nesse mesmo período, se intensificou uma separação entre o atendimento nas creches, de 0 a 3 anos, visto como algo destinado às camadas populares, e a pré-escola, segmento voltado para as classes média e alta. “Essa é uma separação que funda a Educação Infantil no país. As creches, totalmente financiadas pela assistência social, eram vistas como uma alternativa de subsistência para crianças mais pobres e estavam orientadas para cuidados em relação à saúde, higiene e alimentação. Já a pré-escola passou a ser encarada como a porta de entrada das crianças ricas na Educação”, analisa a ex-coordenadora de Educação Infantil do MEC, Karina Rizek.
 
Direito da criança, dever do Estado O marco que rompeu essa tradição no país foi a Constituição de 1988, que determinou a Educação Infantil como dever do Estado brasileiro. “Foi a partir daí que a Educação na creche e na pré-escola passou a ser vista como um direito da criança, facultativo à família, e não como direito apenas da mãe trabalhadora. Com isso, os profissionais de Educação Infantil ganharam mais legitimidade e a Educação Infantil passou a ser objeto de planejamento, legislação e de políticas sociais e educacionais”, explica a coordenadora pedagógica da Fundação Victor Civita, Regina Scarpa. Dois anos depois, em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) reafirmou os direitos constitucionais em relação à Educação Infantil. Em 1994, o MEC publicou o documento Política Nacional de Educação Infantil que estabeleceu metas como a expansão de vagas e políticas de melhoria da qualidade no atendimento às crianças, entre elas a necessidade de qualificação dos profissionais, que resultou no documento Por uma política de formação do profissional de Educação Infantil. Em 1996, com a promulgação da Emenda Constitucional que cria a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), a Educação Infantil passou a ser a primeira etapa da Educação Básica, integrando-se aos ensinos Fundamental e Médio. “Só então a Educação Infantil ganhou uma dimensão mais ampla dentro do sistema educacional e a criança foi vista como alguém capaz de criar e estabelecer relações, um ser sócio-histórico, produtor de cultura e inserido nela e que, portanto, não precisa apenas de cuidado, mas está preparado para a Educação”, diz Beatriz Ferraz, coordenadora pedagógica do Centro de Educação e Documentação para Ação Comunitária (CEDAC), em São Paulo. O artigo 62 da LDB foi pioneiro ao estabelecer a necessidade de formação para o profissional da Educação Infantil. Segundo a lei, a formação do educador desse segmento deve ser “em nível superior, admitindo-se, como formação mínima, a oferecida em nível médio, na modalidade Normal”. O texto reafirma, também, a responsabilidade constitucional dos municípios na oferta de Educação Infantil, contando com a assistência técnica e financeira da União e dos estados. Com o objetivo de oferecer parâmetros para a manutenção e a criação de novas instituições de Educação Infantil, o MEC publicou, em 1998, o documento Subsídios para credenciamento e o funcionamento das instituições de Educação Infantil. No mesmo ano, visando a elaboração de currículos de Educação Infantil, cuja responsabilidade foi delegada pela LDB a cada instituição e seus professores, o ministério editou o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil, como parte dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Um ano depois, em 1999, o Conselho Nacional de Educação (CNE) publicou as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Esses documentos são, hoje, os principais instrumentos para elaboração e avaliação das propostas pedagógicas das instituições de Educação Infantil do país.

A criança e o brincar...

Cyrce Andrade fala sobre a brincadeira como forma de expressão das crianças

Especialista afirma que essa atividade tem um papel fundamental para o desenvolvimento dos pequenos e proporciona aprendizagens

"Brincar tem de ser divertido e, mais
que aprender a perder, é importante
saber que brincar, por si só, é gostoso." 
  
Quando a fonoaudióloga Cyrce Andrade começou a atender crianças em consultório, se perguntava por que os questionários inquiriam sobre tantas coisas, como saúde e alimentação, mas não tocavam no quesito brincar. "Não fazia sentido se o que a garotada mais gosta de fazer é se envolver com jogos e brincadeiras e essa é sua forma de representar e conhecer o mundo”, diz ela, que a partir dali direcionou seu trabalho e seus estudos para conhecer mais o tema. Mestre em Psicologia da Educação, ela foi responsável pela criação da brinquedoteca da comunidade da Rocinha, no Rio Janeiro, há 23 anos. Hoje, atua como assessora de projetos e formadora de educadores. Ao longo da vida, reuniu brinquedos e jogos do Brasil e de diferentes partes do mundo em uma coleção reunida em sua casa, de onde concedeu esta entrevista à NOVA ESCOLA.

Brincar é algo que se ensina?
CYRCE ANDRADE
Sim, é uma aprendizagem social. Quando um bebê bate uma mão na outra, trata-se de um gesto casual. Mas, se alguém repetir o movimento, dá intencionalidade lúdica e aí, sim, ele se transforma em brincadeira. É necessário estabelecer uma relação com o outro. Mas não é só o adulto que ensina. Crianças convivem entre si e trocam experiências a respeito.

Qual é a importância do tema na Educação Infantil? CYRCE Primeiramente, temos de pensar no brincar como algo que vai além dessa etapa. A escola precisa do brincar. E isso não porque tem crianças. A relevância da ludicidade nela se justifica porque é um ambiente onde existem seres humanos. Depois, é preciso enxergar o brincar como a maneira que os pequenos têm de produzir cultura e como a forma de expressão da infância por excelência. Caso se iniba essa linguagem, que opção restará a eles? Infelizmente, há muitas dificuldades de perceber essa produção de cultura lúdica contemporânea porque muitos adultos não conhecem várias brincadeiras ditas modernas. Não estou falando que é preciso decorar o nome de todos os personagens, mas precisamos saber que eles existem. Os educadores têm de saber do que brinca sua turma durante o fim de semana.

Brinquedos eletrônicos estão muito presentes no cotidiano infantil. Eles são indicados para crianças pequenas? E para o acervo da escola?
CYRCE
Não sou defensora do sabugo de milho em oposição ao chip. Acho que um complementa o outro. Esse tipo de discussão já existiu no passado: brinquedo industrializado versus artesanal. O alvo muda, mas já vimos que as coisas se somam. Porém defendo que a escola, por ser um dos raros lugares que os pequenos têm para conviver com os colegas hoje, seja um ambiente que privilegie o brincar em grupo. Mas isso não significa proibir os eletrônicos totalmente.

Alguns eletrônicos parecem ter vida própria, o que acaba gerando a ideia de que a criança não precisa brincar com eles e se torna mera expectadora. Essa concepção faz sentido?
CYRCE
Essa dúvida me faz recordar um estudante de Pedagogia que me contou gostar muito, quando menor, de brincar com um trem elétrico, que ficava rodando sozinho. Ele disse que, enquanto o observava, lembrava que sua avó andava de trem e que ela sempre lhe contava histórias. Ele ouvia a voz dela enquanto o trem estava em movimento. É uma história interessante para ref letir sobre o fato de que não temos como saber o que se passa pela cabeça de alguém enquanto brinca. E não há brinquedo eletrônico que prenda a atenção porque é eletrônico. Ele tem de ser interessante. 
Como resgatar as brincadeiras tradicionais de rua, como amarelinha e pega-pega?
CYRCE
A escola tem de se apropriar delas porque é um dos únicos lugares que hoje oferecem os pré-requisitos para que ocorra: espaço livre e gente reunida. Outro motivo é que elas promovem a integração social. O problema é que qualquer jogo para entrar na escola precisa ter um objetivo didático. O olhar adulto às vezes é redutor das possibilidades.

“Aprender brincando” é uma expressão muito em voga. Funciona usar brinquedos para ensinar? CYRCE Acho possível. Porém isso não significa disfarçar a aprendizagem. Se estamos dentro da escola, qual o problema de ela fazer seu papel? Aprender é tão interessante quanto brincar. Não é castigo. Os educadores precisam compreender que criança gosta de aprender e se dedica ao desafio. Basta saber como conduzi-lo. Observe os pequenos com blocos de madeira. Eles nunca constroem coisas simples: tentam montagens mirabolantes, que vão cair várias vezes até dar certo. Às vezes, disfarçar algo com uma brincadeira pode ser bom para diminuir uma angústia do adulto que precisa ensinar, e, não da criança, que vai aprender.

Ensinar a perder é importante na Educação Infantil? Por quê? CYRCE Quando pequenas, as crianças não têm o valor de ganhar e perder bem definidos e isso tem de ser trabalhado – mas não valorizando o ganhador e ironizando o perdedor. Brincar tem de ser divertido e, mais que aprender a perder, é importante saber que brincar é gostoso. Geralmente, jogos cooperativos são muito valorizados nas escolas: todos ganham ou perdem e perder em grupo é menos dolorido. Quem disse que, quando o jogo vence, as crianças não começam a procurar quem fez a jogada que colaborou com a derrota? O válido em ter jogos desse tipo é proporcionar o contato com a diversidade de regras. Aprender a cooperar é fundamental, mas os tabuleiros não têm o poder de ensinar isso.

Qual o tempo que o brincar deve ocupar na rotina da Educação Infantil?
CYRCE
É uma questão difícil. Não saberia dizer se é algo que pode e deve ser marcado. Por isso, não sou a favor do ambiente chamado brinquedoteca nas escolas quando é usado como um espaço que limita – física e temporalmente – o momento do jogo. Se considero que há um tempo definido para brincar, preciso definir o que não é brincar e isso não faz sentido, já que a construção do conhecimento se dá em vários momentos e não é uma coisa estanque.